Smetak por Augusto de Campos

Smetak por Gilberto Gil

Smetak por Smetak

Smetak para quem souber

Augusto de Campos


Embora Smetak não se considere representante de qualquer linha de "contemporâneos e vanguardistas",
é impossível deixar de situá-lo no tempo histórico. E ao fazê-lo observamos que, à parte as características personalíssimas do seu trabalho, ele se insere num quadro de preocupações artísticas e espirituais comuns a alguns outros mestres modernos que têm buscado, na pesquisa de microtom, ampliar o nosso horizonte
de sensibilidade, rompendo com enraizados hábitos auditivos e aproximando a arte ocidental das práticas musicais do Oriente.

 

Este é o caso do tcheco Alois Haba (1893-1973), o grande arauto do microtonalismo em nosso século.
Entre os pioneiros do microtonalismo estão, também, os compositores russos Nikolai Obuhov e Ivan Vishniegrádski. Na América, o microtonalismo teve o seu profeta no mexicano Julián Carrillo (1875-1965), que chegou a experimentar com 96 subdivisões dentro de uma oitava. Charles Ives (1874-1954), precursor de tantas linguagens novas, também não desdenhou o microtom, embora não o cultivasse sistematicamente. (...) Outro americano, Harry Partch (1901-1974), devotou-se à composição microtonal e à construção de instrumentos apropriados para uma escala de 43 sons por oitava, entre os quais um harmônio ("chromelodeon") e um órgão ("ptolemy"), assim como cítaras, marimbas e guitarras microtonizadas. (...)

 

Os intervalos menores que o semitom são comuns na tradição de países orientais, como a Índia, onde são denominados "srutis". No Ocidente, porém, o seu uso é praticamente desconhecido. Assim, se o microtonalismo de Haba, Obuhov e Vishniegrádski encontra reforço no folclore eslávico, impregnado de Oriente, o dos desbravadores musicais deste lado do Oceano só têm apoio na nossa disponibilidade criativa. Mas quem sabe se os artistas daqui, embora formados pela cultura européia, não se sentirão mais descompromissados para a livre experimentação, por se acharem mais distantes dos centros tradicionais?
É a tese de Cage. E já era a de Oswald: Antropofagia.

 

"Até que ponto as nossas reações emocionais, os hábitos do nosso ouvido, as nossas predileções,
serão para nós uma ajuda ou um obstáculo?" – indaga Ives em seu estudo sobre os quartos de tom.
Como Smetak, ele crê que quando o homem souber ouvir os microtons ele traduzirá com mais liberdade as milhares de ondas sonoras que estão ao seu redor. Isso permitirá que ele amplie a sua consciência espiritual e se aproxime mais da Natureza, como queria Thoreau, o filósofo americano invocado po Ives e por Cage, que se deliciava com os harpejos eólicos dos fios de telégrafo nas matas de Walden.

 

Foi essa mesma "harpa da Natureza" – a melodia contínua de um violão exposto ao vento, tal como se ouve na faixa de abertura do primeiro LP de Smetak, que o levou a explorar o mundo dos microtons. Aquele disco já nos dera muito surpresas sonoras. Entre elas as improvisações vocais de Caetano – um canto-de-ruídos guturais que não tem paralelo em nossa música (popular ou erudita). No conjunto, a gravação funcionava como um painel das propostas compositivas e das sonoridades pesquisadas por Smetak. Pelos nossos ouvidos desfilaram, pela primeira vez, alguns dentre os muitos (cerca de cem) instrumentos criados por esse anti-luthier – insólitas bricolages que vão da vassoura ao móbile. Os mais estranhos sons ecoavam pelas cabeças-cabaças de "vinas", "choris" (choro-e-riso), "sóis", "árvores" e "rondas" e percorriam as cordas dissonantes de "peixes", "aranhas" e "constelações".

 

Mas se no disco anterior, duas faixas, "Sarabanda" e "Preludiando com Joseba" (Joseba = Johann Sebastian Bach) retinham um elo ou um eco da tradição, neste no novo LP INTERREGNO – Walter Smetak & Conjunto de Microtone (selo FCEB/Marcus Pereira ) Smetak parece direcionar ainda mais o seu trabalho para o "mistério do som".

 

À atomização microtonal junta-se agora a pesquisa do "som prolongado", que requereu a participação de um órgão eletrônico. Os macro-sons puxados pelo órgão misturam-se às fibrilações sonoras dos violões microtonizados e dos múltiplos artefatos instrumentais de Smetak. E confraternizam com as quase-vozes dos "boréis" (borés com bocal) e das flautas xavantinas, estabelecendo um nexo instigante com as culturas indígenas do Xingu, mais próximas do Oriente que do Ocidente. Trata-se, em grande parte, de música improvisada, que empenha todo um grupo, no qual encontramos excelentes músicos, como Tuzé de Abreu. Uma opção cada vez mais frequente na música erudita de hoje, de Cage a Stockhausen.

 

O resultado é extraordinário. E comovente, se se considera o trabalho difícil e solitário de Smetak, por tantos anos. Verdadeira deslavagem cerebral.

 

Há músicas para todos os gostos e para todas as horas. Quem só pensa em embalar os ouvidos, que fique no som-nosso-de-cada-dia. Mas quem quiser mais sabor e mais saber, não deixe de ouvir esses extras-sons que conseguiram varar o bloqueio informativo das audições de rotina. Como já disse Smetak:
"Salve-se quem souber!"

 

(Extraido de texto publicado na revista SomTrês, nº 22, outubro de 1980, publicado integralmente
em Música de Invenção, São Paulo, Editora Perspetiva, 1998)

Smetak, tak, tak 

Gilberto Gil


Eu costumava chamá-lo carinhosamente de Tak, Tak. Não só pelo expediente afetivo de abrandar,
com um apelido, a suposta/imposta seriedade da relação mestre/discípulo que entre nós se estabelecera, como pela lembrança que a sua condição de suíço trazia de relógios. Relógios grandes, antigos, engenhosos e artísticos como os elaborados e intrigantes cucos de mecanismos intrincados
e simplória atmosfera caseira. Smetak me dava a sensação de um misto de cientista louco e Papai Noel de província; misto de chefe religioso severo e ameaçador, e velho manso conselheiro de farta cabeleira branca e porta sempre aberta aos curiosos do Antique e do Mistério.

 

Smetak era muita coisa a um só tempo e fica muito difícil separar e analisar as partes de que foi composta sua vida, sua figura e seu papel, na sua existência brasileira que cobriu os seus últimos 30 anos. Desde que resolveu incorporar ao mundo CLEAN de sua razão de viver européia o misterioso e irracional de uma demência vaporosa dos trópicos, sua nova existência brasileira passou a desenvolver-se em nome de uma vertigem delícia/delírio que, ao assumir-se como tônica de seus impulsos novos, desejava-se ao mesmo tempo submissa (microtônica) ao encaixe da Razão Maior, austera, rigorosa e petrificante do frio de onde veio.

 

Cristal e Vapor, Tom e Microtom, Deus e Natureza, Matemática e Metafísica, Apolo e Dionísios, Nirvânico e Orgiástico, o plástico e a cabaça, a inteligência exata de homem branco e sexo alucinado da mulher negra, tudo a oscilar vertiginosamente de pólo a pólo, de pêlo a pêlo de sua pele de animal em mutação. O mutante em exercício pleno de sua entrega consciente ao Novo Modo.

 

Os resultados práticos de seu trabalho marcavam essa oscilação assumida entre a Grandeza Antiga de uma Europa, Atlante, Vitoriosa, Afirmada e Ariana, e o resgate de uma Grandeza Perdida de uma África/América, Lemuriana, Submetida e Adormecida. No vértice do seu triângulo, na cunha/quilha de seu barco: indicações de um claro avanço rumo a um sonho de homem novo. Novo Modo, Novo Mundo.

 

É óbvio que ao examinar seus escritos, suas partituras e gravações, seus instrumentos e plásticas sonoras, seus interesses e estudos esotéricos e filosóficos/religiosos, seu rigor suíço e seu amor ao caos do trópico, fica difícil para o leigo compreender o que se avançou com Smetak. Não creio que Smetak tenha tido sua função ligada ao mundo leigo. Ele era um iniciado e tratava com signos iniciáticos para os que miravam o Início. De uma Nova Era. De uma Nova Espécie, velha espécie de homens divididos entre a Morte e a Eternidade, por uma remota e difícil promessa de Redenção que só se encontra ao alcance da arte radical ou da busca obstinada; só ao alcance dos que resolvem escolher um dos oceanos da Dúvida e nele mergulhar.

 

Smetak é isso, um mergulhador de excelente performance e vários records de profundidade no oceano da Dúvida.

 

Eu, jamais serei impune ao fato de ter sido seu discípulo, seu amigo, seu irmão.

Como componho?

 

Diferenciam-se dois modos: um que se dedica à pesquisa acústica, – construções de instrumentos –,
e depois a sua aplicação prática. Se por acaso faltam timbres ou espécies de sons naturais ou eletrônicos,
as definições ficam difíceis, devido a esta falta de recursos.

 

A realização de novos timbres pode levar o compositor a estranhos resultados, aonde ele pode constatar que a música que ele se comprometeu de fazer compõe-se de ricas ornamentações de timbres, mas não possui o fluido da música organizada. Uma parte da energia desviada no espaço, digamos que seja no papel ou em algum universo paralelo, dará um produto sempre de caráter meditativo, onde nada acontece no sentido orgânico do crescimento da música.

 

Sendo o Som o material do qual fazemos a música, este trabalho inclui pesquisa dos intervalos, a análise das escalas matemáticas ou temperados, e as outras – os sons naturais – (harmônicas). A observação de que o Som, a nota musical em vibração, é o efeito de Algo ainda bastante desconhecido, digamos semente de uma árvore que se multiplica na sua capacidade plena no homem, onde a percepção pode ser o máxima possível, deixa adivinhar que a forma do Som é universal, e entretanto se limita em qualquer objeto visível, passando a transitoriedade do processo da coagulação para a dissolução.

 

O objeto visível se identifica, por exemplo, nos artes plásticas, com o Som concreto, mas não sendo
ainda a música .

 

O perigo neste procedimento, é que a pesquisa pode engolir o compositor, ainda mais observando que "qualquer coisa" é composta de vários elementos causadores (variantes) para uma composição. Nos instrumentos cinéticos, pode ser aprovado pela velocidade do giro, que o ritmo, a melodia (linha horizontal)
e a harmonia, dependem da velocidade do giro. (Instrumento de minha autoria "A Ronda").

 

Infiltra-se um novo fator nestas observações: que não existe o acaso, mas sim o causalidade. Prova esta afirmação um trabalho aonde foi usado um violão comum, em afinação original, e tocado pelo vento.

(Violão eólico). Pela vibração, explorando a frequência inteira das cordas, tem acontecido um fenômeno de continuidade do som, modulando para um epílogo de uma coletividade para um Uníssono. Não houve nenhuma interferência humana, foi apenas o próprio instrumento, já pré-existindo.

 

Sendo este processo gravado, apareceu ainda um outro fator: a interacústica do instrumento:  encontram-se sons e harmonias neste processo, que não ficam auditíveis na maneira comum de tocar um instrumento qualquer de cordas.

 

Desta pesquisa se desenvolveu depois o plano "OVO", que explora a interacústica, e simultaneamente,
a microtonização, que se biparte em dois modos: 1° da afinação temperada, e 2° da afinação natural.
Essas constatações se baseiam na obra do autor mexicano Julian Carillo, "SONIDO 13". Embora como parece, esta obra seja pouco realizável, preocupa a mente e pode influir no procedimento tradicional
do trabalho musical.

 

O processo pode ser feito escrevendo os símbolos no papel. Prefiro porém a improvisação, eventualmente gravada para depois retransformá-la na escrita. Prefiro a improvisação para enfrentar o imprevisto e analisar, durante a "tocada", tanto os elementos musicais, como a ecologia psíquica que os mesmos atraem.
Prefiro este processo vivo de composição, onde sempre deve haver um contínuo temático que não pode parar, à composição escrita, para manter a musicalidade espontânea.

 

 

Por que componho?

 

Defendendo a tese de que um dia, muito longe ainda, seria o verdadeiro caminho de se fazer a música,
se as nossas inteligências fossem mais apuradas, compor por simples prazer ao trabalho, por nele,
no momento, acho a felicidade, a qual talvez posso transmitir ao público. Procuro manejar o processo do máximo dinamismo, que se estende até os não-acontecimentos, e deve ultrapassar o silêncio do som dacaixa (instrumento musical). Aplico o "choque": a dissonância.

 


Para quem componho?

 

Por prazer da própria experiência – se ela for feita em grupos ou individualmente –, para ensinar.
Para criar mil pontos de interrogações e ganhar uma participação grande, se por eventualidade tiver público. Aprendi que a discordância causa mais resultados para evocar diálogos, do que a concordância, procedimento acadêmico que estabelece o processo do pensador "contínuo".

 

Sintetizando, a minha resposta às três perguntas, é a seguinte:

 

Componho para pesquisar a matéria viva humano, a sua reação ou não reação ao tema abordado,
o domínio do silêncio e a profundidade e dinâmica do Som que faz a música.

 

Componho por puro prazer ao trabalho que me propõe durante o processo no qual acontece
uma felicidade muito rara .

 

Digo logo, componho para todos os presentes, que me acompanham, tanto os vivos que os mortos,
para o Universo integral, que finalmente sou eu mesmo, ou poderia ser um dia.

 

Observação: Tenho perdido atualmente as salas de ensaio devido a uma invasão de cupim, fixando-me
na produção de livros para preservar esta experiência da pesquisa, tanto musical que literária.


Walter Smetak